Sobre livros com muita coisa escrita, o “Conta pra mim” e Educação à Distância

facetas de um projeto de implosão da educação brasileira

Por: Yara Singulano | Publicado em 14 de janeiro de 2020

No dia 07 de janeiro comemorou-se nacionalmente o Dia do Leitor. Nesse dia, pulularam no feed da minha rede social publicações exortando a importância da leitura, e eu tracei mentalmente algumas reflexões que agora me disponho a compartilhar com vocês, leitores.

Distopia tupiniquim

Primeiramente, se você não tem o hábito de assistir TV aberta, deixe-me lhe inteirar sobre uma propaganda veiculada pelo Ministério da Educação, divulgando o programa “Conta pra mim” [1], que, segundo o site institucional, “faz parte da Política Nacional de Alfabetização, pretende estimular o desenvolvimento intelectual na primeira infância com técnicas simples usadas pelos pais dentro de casa”.

A propaganda, com a música “Fico assim sem você”, de Adriana Calcanhoto, é realmente uma graça; já o programa em si, criado em dezembro, após duras críticas de parlamentares sobre a pífia atuação do governo na área da educação [2], simboliza um governo cínico que somente alcançou o poder porque boa parte dos brasileiros não possui uma habilidade básica que é adquirida com o hábito da leitura: interpretação de texto (sim, o meme é real – precisamos de interpretação de texto!).

Assim, as últimas eleições presidenciais foram marcadas por fake news; ausência do debate de propostas e ataques pessoais entre candidatos; e quando todas as pesquisas passaram a apontar que com Lula livre a vitória de Bolsonaro não seria possível, Lula foi preso em um caso de law fare [3] mundialmente reconhecido. Foram milhões de eleitores sem capacidade de interpretação de texto que elegeram Jair Bolsonaro – os que acreditaram em fake news, em marxismo cultural e foro de São Paulo, mas também os que não conseguiram identificar (ou seja, interpretar) a parcialidade dos grandes meios de comunicação, se contentando em aceitar, de forma passiva, a narrativa unilateralmente produzida como a verdade absoluta sobre os fatos.

Alguns agora se dizem arrependidos, se sentem enganados, dizem que o governo não está fazendo o que havia prometido – mas todos os sinais estavam ali desde o início: o autoritarismo; o anti-intelectualismo; a síndrome de vira-lata travestida de vassalagem aos Estados Unidos, entregando as riquezas nacionais e satisfazendo todas as vontades do deus Mercado, enquanto crescem no país os índices de violência (sobretudo contra mulheres, população LGBTQI+, índios e líderes populares), a pobreza e o desemprego… Eu, leitora ávida, identifiquei logo esses sinais, pois já os havia vislumbrado nas páginas de distopias como “1984” e “O conto da aia”, em romances como “A menina que roubava livros” e “As veias abertas da América Latina”, em livros sobre política como “A elite do atraso” e “Como morrem as democracias”. Os sinais não foram interpretados, mas estavam lá.

Autossabotagem: Um projeto de país

Tudo o dito até aqui é para ilustrar um argumento levantado há muitos anos pelo genial Darcy Ribeiro, segundo o qual a crise da educação no Brasil não é uma crise, e sim um projeto. Dessa forma, a morosa atuação do MEC, o descalabro de um projeto que transfere às famílias responsabilidade sobre a alfabetização de crianças, a fala recente do presidente a respeito da mudança nos livros didáticos a partir de 2021, supostamente a fim de eliminar vieses ideológicos e suavizar o conteúdo [4], a meu ver, não se tratam de uma sucessão de gafes, tampouco são apenas fruto da incompetência técnica dos envolvidos (embora seja patente, também, a incapacidade de gestão desse governo). Trata-se de algo muito mais grave, uma bem orquestrada derrocada dos avanços a duras penas conquistadas por governos anteriores.

O país que teve Fernando Haddad como o Ministro da Educação que elaborou o fenomenal Plano Nacional de Educação de Direitos Humanos, tem agora Abraham Weintraub, cuja gestão do MEC se resume a “sai o kit gay e entra a leitura em família” [5]. Antes que o leitor com dificuldade de interpretação de texto ache que a minha crítica se dirige à leitura em família, esclareço que a contação de histórias pelo meu pai, ganhar livros de presente de minha mãe, tudo isso me tornou a leitora compulsiva de hoje, mas pertence a uma realidade não compartilhada pela grande maioria das famílias brasileiras: um pai que era autônomo e tinha horários maleáveis, uma mãe que não trabalhou fora durante minha infância , uma família de classe média cujos pais não haviam cursado, até então, o ensino superior, mas que almejavam o diploma para suas filhas e se esmeravam para nos fornecer a melhor educação possível.

Em resumo: meus pais eram alfabetizados, compartilhavam as tarefas de criação das filhas, e tinham tempo e disposição para ler; tinham dinheiro para comprar livros e os quadrinhos da Turma da Mônica que eu adorava. O programa “Conta pra mim” pode funcionar, mas apenas para esse tipo de família – ou seja, para que as menos precisam de atenção do poder público. Eis aí o primeiro de muitos (e há muitos outros) empecilho para o seu triunfo, e se trata de um dado tão óbvio, que me recuso a acreditar que esse programa não foi criado justamente para fracassar. É autossabotagem.

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Novas ferramentas para velhas práticas

Ainda na missão de destruir, pouco a pouco, a educação nacional, o ministro da Educação não deixa passar uma semana sem atacar as instituições públicas de ensino superior do país, seja com contingenciamento de recursos, seja com acusações que beiram o ridículo [6], o que representa, no mínimo, uma enorme contradição dentro de um governo que se diz patriótico. Ao mesmo tempo, concessões são feitas ao setor privado – mais recentemente, uma portaria de dezembro de 2019 que permite que as instituições ofereçam, em todos os cursos de graduação presenciais (exceto medicina), absurdos 40% de sua carga horária total na modalidade de educação à distância. Assim, reduz-se drasticamente os gastos das instituições (com salário de professores, com manutenção de espaços físicos, etc), e, consequentemente, aumentam seus lucros [7]. Não me estenderei em uma análise minuciosa dos impactos dessa portaria, me limitando a uma consideração específica sobre como substituir a leitura (ao invés de complementá-la) pelas tais videoaulas pode ser prejudicial à formação do aluno.

Geralmente sob o argumento de que não tiveram tempo para “ler a doutrina” (jargão que quem é da área jurídica conhece bem), proliferam os alunos que buscam as videoaulas em véspera de prova. Os cursinhos preparatórios para OAB e concursos em geral também são muito comuns na modalidade virtual. E o formato dessas aulas é a maçante aula expositiva, em que geralmente o professor esmiúça e entrega de bandeja para o aluno (ou espectador) o conteúdo da lei, da teoria daquele autor, o entendimento específico daquela banca de concurso, conteúdo esse que será memorizado e aplicado mecanicamente.

Trata-se de um modelo que utiliza uma plataforma de última geração, a internet, mas cujo formato da aula é tradicionalíssimo, de mera transmissão de conteúdo do professor para o aluno [8]. E assim a leitura, e todas as habilidades desenvolvidas a partir desse hábito – escrever bem e corretamente, interpretar, desenvolver senso crítico – ficam latentes, inexploradas. Sim, a maioria das aulas presenciais também seguem, ainda (e infelizmente), o modelo expositivo, mas existe ao menos a possibilidade de diálogo, de debate, de dúvida… de modo que a videoaula me parece mais um retrocesso do que um avanço em relação à aula presencial, não somente do ponto de vista de qualidade do ensino, mas de possibilidade de desenvolvimento de habilidades socioemocionais. A necessidade de uma profunda reforma no modo como educamos e avaliamos nossos alunos, do ensino básico ao superior, implementando metodologias ativas, por exemplo, pode ser tema de outro artigo…

A internet pode e deve ser utilizada para educar, mas que o seja em toda a sua potencialidade, e não para sustentar um modelo de educação alienante, mecânica, que não emancipa o aluno e não forma um cidadão. Senão, será a repetição de um modelo falido, dessa vez transmitido on-line.

Assim, um aluno que gabarita uma difícil prova objetiva de processo civil não consegue desenvolver um texto dissertativo satisfatoriamente; ou ler e explicar o que entendeu de um artigo científico; e comete erros gramaticais grosseiros. Não cabe aqui fazer conjecturas sobre a trajetória profissional desse aluno (principalmente porque não parto dos pressupostos da crença meritocrática…), mas é certo que quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê – ou seja, mal interpreta os textos dos jornais, a sociedade, a política, a vida, e por isso não pode exercer sua cidadania, pois não é autônomo nem livre, e sim escravo das narrativas alheias.

É incrível que possamos assistir Umberto Eco entrevistando Foucault [9]; mas é imprescindível que leiamos O nome da Rosa e Vigiar e Punir. Eu, que por morar no interior conheci internet apenas com 13 anos, tive a enciclopédia Barsa em casa e vivi uma adolescência sem smartphone, me sinto um pouco como Manoel de Barros: não sou da era da informática, sou da invencionática. Ainda estudo em livros, e nas margens de suas páginas faço muitas anotações, principalmente quando discordo do autor, e quero ali apontar meus argumentos, como se um diálogo fosse. Grifo os trechos que me comovem nos romances e faço dedicatórias para mim mesma nos livros que compro. Livros físicos, é claro. Ainda me sinto desconfortável lendo no Kindle

Rodapé

Sim, a maioria das aulas presenciais também seguem, ainda (e infelizmente), o modelo expositivo, mas existe ao menos a possibilidade de diálogo, de debate, de dúvida… de modo que a videoaula me parece mais um retrocesso do que um avanço em relação à aula presencial, não somente do ponto de vista de qualidade do ensino, mas de possibilidade de desenvolvimento de habilidades socioemocionais. A necessidade de uma profunda reforma no modo como educamos e avaliamos nossos alunos, do ensino básico ao superior, implementando metodologias ativas, por exemplo, pode ser tema de outro artigo…

Acreditamos que a educação é a melhor forma de transformar o Brasil em um país melhor para os brasileiros.
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